terça-feira, 4 de agosto de 2015

Programas: 'Ficha Rosa' já é quase regra em Belém

No imaginário popular, sexo e beleza costumam habitar o mesmo universo. É comum que a bela moça que sorri e recebe os convidados em um evento concorrido ou o rapaz que desfila na passarela sejam alvo da cobiça de muitos. Alguns admiradores se aproximam e fazem propostas, e, por vezes, essas transações se concretizam. Este tipo de programa sexual tem o nome de “ficha rosa”, ou “book rosa”, e ganhou notoriedade no Brasil quando se se tornou tema central da novela das 23h da Rede Globo, Verdades Secretas.
Entretanto, longe de ser feito de forma discreta, as solicitações de garotas “ficha rosa” - ou azul, no caso de homens - nos grupos online de promotores e modelos de Belém são cada vez mais abertas e comuns. Os profissionais que não aceitam esse tipo de trabalho reclamam do assédio de seus contratantes e do estigma que a prática trouxe para a profissão, enquanto aqueles que prestam este serviço relatam suas experiências. Pela lei, pessoas que mediam esses programas podem pegar de dois a cinco anos de reclusão pelo crime de lenocínio, que é a ação de explorar, estimular ou favorecer o comércio carnal ilícito, a prostituição, ou induzir ou constranger alguém à sua prática.
Delegado Bragmar: “normalmente, o que se vê é um acordo de benefício mútuo” (Foto: Cristiano Martins / O Liberal)Delegado Bragmar: “normalmente, o que se vê é um acordo de benefício mútuo” (Foto: Cristiano Martins / O Liberal)
Sem sequer perceber que estava fazendo um programa, Patrícia (nome fictício), de 29 anos, teve sua primeira experiência com a ficha rosa há oito anos. Uma época em que a denominação era praticamente desconhecida.  “Aconteceu numa feira de madeireiros que estava sendo realizada na Estação das Docas. Eram cinco recepcionistas e o cachê era R$ 80,00 por 6 horas de trabalho. Perto do fim do horário, a nossa supervisora disse que os donos do estande queriam que nós desfilássemos de biquíni dentro do estande para uns clientes que chegariam e ganharíamos o biquíni. Como eu também fazia trabalhos como modelo, achei que não haveria problema”, relembra.
A outras recepcionistas recusaram a proposta e o cachê foi elevado para R$ 150, com pagamento imediato. “Eu e outra moça topamos; as outras não. No fim, as meninas foram embora e nos convidaram para jantar com eles. Até o momento, não vi maldade. Fomos ao jantar e um dos clientes me chamou atenção por ser bonito e me olhava bastante. A nossa supervisora foi também e logo disse que o tal cliente tinha gostado muito de mim e queria sair comigo”, conta. Patrícia diz que aceitou o convite, pois, além de gostar de sua aparência, o viu como “um bom partido”.

'Círculo vicioso'

A noite terminou em um motel e, em seguida, o homem a deixou em casa. “No dia seguinte, falei com a amiga que também tinha ido e ela me contou que saiu também com um dos clientes. Ele havia oferecido dinheiro pra ir ao motel com ela, que pensou em não ir, mas como ele disse que a supervisora daria o dinheiro na hora, R$ 200 a mais, e como ela já estava lá, resolveu aceitar”. Foi então que Patrícia percebeu o que havia ocorrido. Ela levou sua dúvida para a supervisora, que confirmou a suspeita e repassou o cachê. “Primeiro fiquei arrasada, porque achei que ele havia gostado de mim, cheguei a me sentir suja. Chorei bastante. Ela me disse que não havia mal nisso, que não estávamos cometendo nenhum crime e que poderíamos ganhar muito dinheiro assim e que os caras eram discretos, levariam a gente pra restaurantes e até viagens”, diz a moça, que acabou se convencendo de que os trabalhos ficha rosa seriam positivos.
Desde então, Patrícia já perdeu a conta de quantos trabalhos aceitou. Muitos intermediados por terceiros, outros propostos pelos clientes diretamente. O dinheiro ganho com a ficha rosa foi destinado a todo tipo de coisas, porém, a garota sempre teve como objetivo parar os programas. “Eu sempre pensei em juntar um dinheiro e depois parar. Mas então eu penso em comprar um telefone novo de última geração e continuo. Penso em comprar um carro, penso em comprar uma casa, mas tenho consciência de que é um círculo vicioso, porque como o dinheiro vem ‘fácil’ você sempre quer mais e mais coisas”, observa. A jovem está prestes a concluir a faculdade de Direito, que paga com seus próprios recursos, e mora sozinha. “Meus familiares nem sonham com isso, acham que faço estágio e eventos. Este ano fiquei com medo, pois todo mundo está falando sobre ficha rosa, book rosa e desconfiam. Acho até que muita gente sabe, mas fica calada”, confidencia.
Independente da novela, as solicitações para os trabalhos de ficha rosa estão cada vez mais comuns, o que irrita os profissionais que se recusam a fazer programas após os trabalhos. “É uma situação bastante chata e, o pior de tudo, muito comum”, opina a promotora de eventos Shirley Carvalho. “Assim como temos bons exemplos de coordenadores, que, quando solicitados pelos clientes, não permitem a aproximação com as promotoras, temos aqueles que tentam intermediar a ficha rosa”, expõe.

Jantar

O próprio contratante abordar os promotores é cada vez mais normal. “Eles sempre chegam com o tal convite para jantar. Essa é a deixa. Se a moça aceitar, eles avançam mais”, relata. Patrícia confirma este tipo de “código” nas investidas. “Aparecem uns que perguntam se queremos sair pra jantar, aí já dá pra saber o que querem, mas eu não ofereço. Outros perguntam para os nossos supervisores ou coordenadores se saímos depois do evento. Como nem sempre faço eventos com os que já sabem do programa, eles nos defendem com unhas e dentes. Pedem para o cliente nos respeitar e jamais pedir nossos telefones”, diz.
Essa intermediação, aliás, é que torna a prática da ficha rosa ilegal. A lei classifica como agenciador aquele que obtém lucro com a exploração sexual de terceiros. “Todo aquele que induz, atrai, facilita ou impede de abandonar a prostituição está incorrendo em crime. Cada pessoa é livre para fazer do seu corpo o que bem quiser, porém, quando se trata do favorecimento, ocorre a ilegalidade”, explica o delegado Bragmar Santos, titular na Seccional da Cremação.
Apesar disso, são raras as denúncias acerca da ficha rosa em Belém. “Normalmente o que se vê é um acordo de benefício mútuo, onde é lucrativo para ambas as partes manter o sigilo sobre a transação”, conta o delegado, que ressalta a vitimização de homens também. “Quando se fala de prostituição, os olhos estão sempre voltados para as mulheres, mas existe das duas formas”, aponta. Caso alguém queira denunciar uma situação de exploração, o Boletim de Ocorrência Policial pode ser lavrado em qualquer delegacia. “Mas, para isso, precisa haver uma materialização do crime”, ressalta.
Com a ausência de denuncias, é cada vez mais comum que os agenciadores se sintam à vontade para solicitar moças e rapazes para trabalhos de ficha rosa/azul. Nos grupos criados nas redes sociais para servir como um “mural de oportunidades” é fácil identificar trabalhos suspeitos ou escancaradamente de natureza sexual. Para Patrícia, isso só reforça o estigma carregado pela profissão de recepcionistas, promotores e modelos.
“Acho que praticamente todos acham que fazemos programas, porque não é difícil vê-los perguntando ou pedindo para sairmos pra jantar. Ou então pedem nosso telefone e, quando ligam, nem sempre falam [do programa] na cara logo. Mas, quando sabem que tem uma moça no meio que faz, já falam que todas fazem. Eu até me sinto culpada por fazê-los acreditar que todas fazem. Eu mesma não aconselho ninguém a fazer”, resume Patrícia.

O que diz a lei

Artigo 228 do Código Penal Brasileiro (Decreto Lei 2.848/1940)
  • Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
  • Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o - Se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
  • Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º - Se o crime, é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
  • Pena - reclusão, de quatro a dez anos, além da pena correspondente à violência.
§ 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
(Pararijos NEWS)

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